Kabengele Munanga
Realizada em: 11/9/2008Atuação: Antropólogo, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e membro de corpo editorial das revistas: África (São Paulo), Tricontinental – Revista PEC-G (UFPB), Humanitas (PUCCAMP) e Revista Digital Intolerância. Atua principalmente nos temas: mestiçagem, identidade nacional, Identidade Negra.
Obras: MUNANGA, Kabengele; GOMES, N. L. Para entender o negro no Brasil de hoje. In: Ação Educativa (Org.). Viver, Aprender Unificado, 7a. e 8a. série. 2 ed. São Paulo: Global Editora, 2008, p. 35-88; MUNANGA, Kabengele. Política de ação afirmativa no Brasil: Consenso e desacordo na política de cotas na universidade pública. In: Maxim Repetto; Leandro Roberto Neves; Maria Luiza fernandes (Org.). Universidade Inconclusa: os desafios da desigualdade. Boa Vista: Editora da UFRR, 2008, p. 13-31; MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, 2005.
Salto – Professor, como o senhor definiria o racismo?Kabengele Munanga - Em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que há uma confusão geral entre alguns termos. Há pessoas que confundem preconceito, discriminação racial e racismo. Os preconceitos, que são pré-julgamentos sobre o outro, sobre outros povos, sobre outras culturas, que são opiniões às vezes formalizadas, às vezes não formalizadas, acompanhadas de afetividade, são diferentes da discriminação. A discriminação é expressa pelos comportamentos observáveis, que podem ser censurados e até punidos pela lei, são atitudes que não são invisíveis.
Outra coisa é um "derivado" que é chamado de racismo, que praticamente é todo um sistema de dominação que está por trás disso, todo um sistema de dominação sustentado por um discurso que, às vezes, tem conteúdo de uma ciência, por ser uma pseudociência, uma doutrina que existe justamente para justificar a dominação, a exploração do outro. Esse discurso legitimador foi considerado, no século XVIII e XIX, como uma ciência da época, uma ciência chamada de raciologia, mas que tem vários nomes. Mas se olharmos bem, na história da humanidade, esse sistema é mais antigo do que a modernidade ocidental. Nós aprendemos que isso começa com a modernidade ocidental, mas é muito mais antigo, podemos colocar na origem dos contatos entre os povos, quando os europeus começaram a imigrar e montaram seus sistemas de dominação. Alguns chamam de ideologia esse sistema de dominação, não o sistema como tal, mas o discurso que acompanha esse sistema de dominação e que legitima isso.
Salto – Como o senhor definiria a diáspora africana?Kabengele Munanga – Com relação à diáspora africana, podemos situá-la em três momentos: a partir da ideia de que a África é o berço da humanidade, os africanos saíram do continente africano para povoar os demais continentes, isso já faz parte da diáspora africana. Saíram livremente, voluntariamente, e todos, o resto da humanidade, e mesmo aqueles que voltaram para a África e os que invadiram a África, são todos descendentes de africanos. Isso faz parte dessa diáspora mais antiga, que é mais conhecida como "o berço da humanidade". A segunda diáspora é o produto resultante do tráfico negreiro. Tráfico negreiro que levou africanos para todos os cantos do mundo, para o continente asiático, para o continente americano, e para a Europa. E nessa segunda diáspora os africanos não saíram voluntariamente, foram sequestrados, amarrados, transportados e deportados, não podemos considerá-los como imigrantes porque eles não sabiam nem por onde iam, nem para onde estavam sendo levados, nem por que motivo. Foi por meio dessa grande diáspora que as Américas se desenvolveram, que a Europa se desenvolveu, com a mão de obra africana, num mundo em que a tecnologia estava no ponto em que estamos hoje, onde a produção e o desenvolvimento precisam do trabalho humano. Foi graças a essa mão de obra escravizada que nós, os africanos, construímos as riquezas dos países, como o Brasil. A terceira diáspora é a que data de alguns anos antes das independências africanas, os africanos tiveram que sair obrigados pelas condições de vida dos seus países, condições de vida que foram deixadas pelos colonizadores, depois de anos de colonização. A colonização não aconteceu como se esperava, e seu desenvolvimento foi feito com dirigentes fascistas sanguinários, sustentados pelos próprios europeus que colonizaram a África. Alguns fugiram dessas condições de vida, das guerras, para encontrar melhores condições de vida na Europa. Mesmo os intelectuais africanos fugiram da África porque não encontraram melhores condições de produtividade intelectual, e muitas vezes por causa das questões políticas foram para outros países. Os Estados Unidos, por exemplo, é um lugar onde há grandes intelectuais africanos. São africanos que, desde o nascimento, investiram em educação, os pais educaram, alimentaram, pagaram a escola, pagaram a faculdade e, de repente, os americanos os recebem de mão beijada, sem terem investido nem um tostão. São encontradas literaturas africanas nas grandes universidades africanas, nos grandes escritórios africanos, isso é a terceira fase da diáspora africana. Nós temos na África também uma nova diáspora africana: muitos imigrantes dos países africanos em guerra são encontrados, inclusive aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras cidades, alguns raros intelectuais. Mas a grande diáspora africana está nos países ocidentais.
Salto – Como o senhor vê essa diáspora africana no mundo contemporâneo? Quais as implicações políticas das diásporas africanas pelo mundo?
Kabengele Munanga – Essa terceira diáspora, a diáspora mais recente, falando de um modo global, pode ser analisada de acordo com cada país. São países que estão trazendo contribuições, têm uma força de trabalho. Em alguns países, é uma força de trabalho mal remunerada, como nos países ocidentais, uma mão de obra barata. Da mesma maneira que os africanos escravizados fizeram também na diáspora anterior, como resultado do tráfico, os africanos naqueles países estão dando cultura, dando sangue, produzindo etc. Eles estão entrando com uma cultura forte em alguns países europeus. Quando se chega a Paris, acredita-se que aquele é o lugar da música africana. Eles estão entrando com cultura e contribuem, mas têm problemas também, são as maiores vítimas da discriminação racial, as chamadas xenofobias, que nada têm a ver com os imigrantes europeus, têm a ver com os imigrantes, principalmente africanos, dos países árabes e dos países africanos. O que está por trás dessa xenofobia não é apenas que os africanos estão roubando empregos, é que são negros. Essa xenofobia, o que está por trás dela é a discriminação racial, é o racismo. Então, é uma diáspora que tem problemas, os africanos são as grandes vítimas, têm problemas no mercado de trabalho, e é também uma situação muito semelhante com a situação dos africanos da diáspora que nasceu do tráfico negreiro. São as maiores vítimas da discriminação racial dos países que eles ajudaram a construir, como o Brasil e tantos outros da América do Sul. Se olharmos quem construiu as bases da economia colonial brasileira, todo o trabalho foi feito pelo africano, pelos africanos escravizados. Falo dos africanos escravizados, porque nenhum africano nasceu escravo, até que viesse alguém e o escravizasse. É por isso que temos hoje de falar de políticas de ação afirmativa, das cotas, porque eles constituem as maiores vítimas da sociedade. Os países europeus que receberam esses imigrantes africanos já estão falando de multiculturalismo, em ações afirmativas ou de não-discriminação. Quer dizer que todos os países do mundo que receberam africanos das antigas diásporas estão praticamente no mesmo barco.
Salto – Vamos falar agora do Brasil: o que o senhor diria acerca da presença africana e afrodescendente, da presença negra no Brasil? E quais as implicações políticas, antropológicas e psicológicas que o senhor destacaria em relação a essa presença, pensando o contexto brasileiro?
Kabengele Munanga – Essa presença está no cotidiano do brasileiro, está no ar que o brasileiro respira, está no ritmo do corpo do brasileiro, está na comida do brasileiro. Só que o brasileiro também não percebe isso e gostaria de ser considerado como europeu, como ocidental. Isso está claro no sistema de educação. Nosso modelo de educação é uma educação eurocêntrica. A escola é o lugar onde se forma o cidadão, onde se ensina uma profissão. Há escolas que sabem lidar com os dois lados da educação: ensinar a cidadania e a profissão. A história que é ensinada é a história da Europa, dos gregos e dos romanos. No entanto, quem são os brasileiros? Os brasileiros não só descendentes de gregos e romanos, de anglo-saxões e de europeus. São descendentes de africanos também, de índios, e descendentes de árabes, de judeus e até de ciganos. E se olharmos o nosso sistema de educação, onde estão esses outros povos que formaram o Brasil? Então, há um problema no Brasil, além de essas pessoas serem as maiores vítimas da discriminação social, no sistema de educação formal elas não se encontram, elas são simplesmente ocidentalizadas, são simplesmente embranquecidas. Se colocarmos as questões: "quem somos, de onde viemos e por onde vamos?", vamos ver que o Brasil nasceu do encontro das culturas, das civilizações, dos povos indígenas, africanos que foram deportados e dos próprios imigrantes europeus de várias origens. Comemoramos os cem anos da imigração japonesa, e fala-se mais dos cem anos da imigração japonesa do que dos 600 anos da abolição. Não tenho nada contra isso, mas fala-se muito pouco da abolição. Então, se queremos saber quem somos, devemos conhecer todas as nossas raízes, aqueles povos que formaram o Brasil, alguns dizem que somos um país mestiço, mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já que não queremos reconhecer a diversidade das coisas, suponhamos que sejamos todos mestiços, vamos pelo menos estudar as raízes da nossa mestiçagem, isso faz parte da nossa cultura. Mas o brasileiro não se incomoda, o brasileiro quer se ver como europeu ocidental, parece que o brasileiro não se enxerga.
Salto – O senhor podia falar um pouco sobre o impacto psicológico dessa situação, com relação à constituição do sujeito?Kabengele Munanga – Um dos impactos é o que nós chamamos de baixa autoestima. Baixa autoestima do negro. Baixa autoestima do aluno negro na escola. Isso prejudica o processo de aprendizagem, e explica a maior taxa de evasão, de abandono escolar dos alunos negros, comparativamente às crianças de outra ascendência. Se todos são pobres, em especial nas escolas mais pobres da periferia, como explicar que a criança negra é aquela que tem taxa de evasão maior? Isso se deve ao fato de que, na escola, este aluno nunca vê a cara dele. Ele se olha no espelho e não se vê. Ou, quando se vê, quer se ver como branco. Na França, nós chamamos de pele negra, marca branca. Isso faz parte do impacto, do impacto psicológico: a negação da própria humanidade. Há um momento em que o negro introjeta tanto que naturaliza isto: "Sou mesmo inferior, não tenho as mesmas aptidões morais, intelectuais. Não sou capaz de entrar naquela universidade, porque não vou passar". Infelizmente, nós não temos ferramentas para medir isso. Muitas vezes, quando falamos da questão do negro, estamos falando das coisas invisíveis. É como o iceberg. Você vê a ponta do iceberg, mas não dá para ver a parte mais profunda, que é o aspecto psicológico, as consequências disso na educação.
Salto – Ainda tratando um pouco sobre subjetividade, o senhor poderia falar sobre a questão da subjetividade dos/das afrodescendentes, na população brasileira como um todo, em relação à subalternização e a esse processo de invisibilização dos valores civilizatórios afro-brasileiros?Kabengele Munanga – Tudo isso é decorrente dos mecanismos psíquicos. A partir do momento em que o processo de educação é tão forte e a pressão psicológica também é muito forte, a pessoa passa a introjetar isso. Isso tem consequência até no próprio comportamento das pessoas. A pessoa cria um comportamento de adaptação. Ela devia andar de cabeça erguida, mas anda com a cabeça lá embaixo. Não porque ela nasceu assim, mas porque a própria história fez dela uma pessoa com essa submissão. Coisa que foi completamente naturalizada. Naturalizada não somente no ponto de vista da vítima da discriminação, mas naturalizada do ponto de vista daquele que também é vitima, daquele que discrimina, ele também naturaliza esse comportamento. Acha que é natural. Não lhe incomoda o fato de não ver o negro em um determinado lugar. As pessoas não se incomodam. Essa invisibilidade é que foi introjetada. E, às vezes, as pessoas, como eu, que não nasceram no Brasil, podem chegar aqui e ver as coisas que o brasileiro não vê.
Salto – Falando agora um pouco sobre escola e sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros. O senhor acha que é possível pensar uma escola no Brasil impregnada por esses valores afro-brasileiros? E quais os pontos de tensão em relação a isso? Kabengele Munanga – Bom, um dos nossos problemas é esse. Porque nós formamos um cidadão que não sabe realmente quem ele é. Ele quer ser considerado como europeu, como ocidental. Quando, na realidade, ele é brasileiro. Ele é o fruto, o resultado de um encontro das culturas e das civilizações. No cotidiano, ele passa, tropeça nas contribuições africanas, mas não tem consciência disso. Seria bom oferecer, na formação do cidadão, não apenas os valores ocidentais, mas os valores da história, da visão do mundo, da filosofia de vida dos povos que construíram o Brasil. É necessário que isso seja ensinado nas escolas brasileiras, faz parte do processo da educação, para que uma pessoa possa respeitar a outra. O negro, o índio, eles têm que descobrir que a vida deles, e eles mesmos, foram construídos culturalmente como brasileiros. E que somos em parte europeus e em parte indígenas e africanos. Isso é importante na formação do cidadão. É saber o que nós somos e, a partir daí, nós podemos dar valor ao outro. É respeitar o diferente, aquele que nós chamamos de diferente, que está dentro de mim como cidadão, como cidadão brasileiro. É por isso que as nossas escolas devem ser impregnadas não apenas de valores africanos, mas dos valores de todos que aqui se encontraram, para construir esse Brasil, que é um país da diversidade. E a diversidade é uma riqueza da humanidade. Não é uma pobreza. Mas o que vejo é cada brasileiro querendo ser ocidental. Quando ele chega na Europa, ele vê que não é. É aí que ele descobre que é brasileiro. Mas podemos descobrir isso a partir daqui mesmo. Valorizar aquilo que nós somos.
Salto – O senhor poderia destacar alguns exemplos disso?Kabengele Munanga – A palavra africanidades está praticamente na boca de todas as pessoas conscientes. Porque, afinal, o que são africanidades? Africanidades não é nada mais que a resistência da cultura africana. Toda a cultura africana, que foi reprimida aqui, resistiu. Contribuiu na formação da identidade brasileira. No modelo de comportamento brasileiro. Essa africanidade está na cultura, e está na própria língua portuguesa falada no Brasil, que recebeu influência muito grande. Essa africanidade, que está na religião, que está na cultura, que está no nosso próprio corpo, que está nos esportes – como a capoeira e tantos outros –, que está nas artes plásticas, esses são os valores africanos. E nosso gesto, e nosso movimento. Eu me lembro, na Copa do Mundo da Itália, quando os Camarões ganharam da Inglaterra, disseram que os Camarões estavam imitando a ginga brasileira. Ginga é o movimento do corpo, técnica do corpo, que vem da educação, que os africanos trouxeram para aqui. Eles não estavam imitando. Os brasileiros é que receberam isso dos africanos. E faz parte da africanidade. Faz parte dos valores africanos que estão aqui, e passamos por cima deles sem saber. São cotidianos.
Salto – Ainda falando sobre africanidades, no campo da reflexão acerca das africanidades, como o senhor vê o Brasil?Kabengele Munanga – O lugar de reflexão, de produção do conhecimento, é no centro de pesquisas das universidades. Tem algumas pessoas que dedicaram a sua vida intelectual para refletir sobre a cultura africana, a história, tudo isso. Mas essa reflexão ficou presa, praticamente, na academia. Não foi difundida na escola. Algumas pessoas, para conhecer um pouquinho da história da África, precisaram passar pela universidade. Estamos falando hoje de racismo. Tem pessoas que nunca estudaram na escola o porquê do racismo. Que não sabem nem o que é, o que significa. Essas coisas ficaram praticamente presas na universidade. Precisamos tirar essa reflexão da universidade. Tirar essa produção de conhecimento para difundir isso no tecido social da sociedade, para conscientizar as sociedades, para que os brasileiros possam se conhecer melhor. Mais do que isso, são poucos, poucos mesmo, na academia, que estudam, que têm um trabalho de reflexão, de produção de conhecimento sobre a cultura negra, ou sobre os problemas do negro na sociedade. Mas esses poucos são simplesmente brancos. São poucos negros que entraram na academia e têm essa reflexão, têm essa contribuição a dar. Porque eles têm uma história de vida, que eles carregam, há coisas que eles podem explicar melhor do que os outros sobre a sua vida, a sua cultura, a sua visão do mundo. Não é sonegar a contribuição do outro, mas o outro pode ter uma observação acadêmica, mas tem coisas que ele nunca vai sentir. É como você pedir para um burguês explicar o que é fome. Ele vai teoricamente explicar fome, mas ele não vai explicar a fome como alguém que já passou fome na vida dele.
Salto – O senhor teria alguma lenda ou mito para contar acerca dessa problemática?Kabengele Munanga – Eu fico muito envergonhado contando lendas, mitos. Há momentos em que não me lembro de uma lenda, de um mito. A única coisa que posso observar é que muitas vezes as pessoas não entenderam a cultura africana. Tudo o que os africanos passaram é considerado como fraqueza. Como inferioridade. Como falta de combatividade. São vistos como coitados. Mas eu acho que o africano está pagando muito por causa da sua generosidade, da sua humanidade. Porque todos são descendentes de africanos. Aqueles que invadiram a África, como colonizadores, foram muito bem recebidos. Os africanos nem pensavam que iam fazer da África tudo o que eles fizeram. Os africanos não criaram uma civilização de violência. Isso não quer dizer que não houve conflito na África. Normalmente, na formação de grandes impérios, há conflitos, isso faz parte da história da humanidade. A Europa hoje, que nós consideramos como tranquila, até a 2ª Guerra era um campo de batalha. Todo mundo sabe o que era a Europa. Os africanos são muito generosos. Isso faz parte dos seus valores, da sua visão, o seu respeito à vida, ao outro. E esse valor faz parte. São poucos momentos na vida dos africanos de pegar as armas para se defender. Porque eles têm uma outra visão de mundo.
Salto – O senhor teria alguma indicação a respeito de livros, filmes, que pudéssemos sugerir aos professores e educadores?Kabengele Munanga – Com relação aos livros, tem muita coisa no mercado. Por causa da Lei n. 10.639/03, as pessoas estão produzindo um monte de coisas para ganhar dinheiro com isso. Então, eu tenho muito receio pra recomendar qualquer livro. Se tivessem avisado, eu poderia fazer uma seleção. Tem livros de reflexão teórica, em nível muito alto, livros intelectuais mais interessantes sobre racismo. "Racismo na sociedade" é um livro do Carlos Moore, de um nível intelectual muito alto, que não seria um livro bom de iniciação para quem começa a entender a África. Mas tem livros paradidáticos, como o livro que eu publiquei junto com a Nilma Lino Gomes, "Para entender o Negro no Brasil de hoje: história, problemas e caminhos". Tem um livro antigo meu que vai ser relançado agora pela Autêntica, que era "Negritude". Um livro de mais de 20 anos atrás, que vai ser publicado de novo. E tem um monte de coisas novas.
Salto – O senhor poderia falar sobre a Lei n. 10.639/03, já que o senhor tocou nela? Gostaria que senhor falasse da sua percepção, depois de tantos anos de Brasil, assistindo à luta do movimento negro, das lideranças, na militância por reivindicações, e sobre o panorama atual: nós temos a lei de cotas em algumas universidades, temos a Lei n. 10.639/03. Como o senhor avalia o panorama atual? Kabengele Munanga – A Lei, o espírito da Lei foi muito bom. Principalmente pelo fato de ensinar aos brasileiros a história dos negros, começando com a história da África, para saírem dessa visão eurocêntrica da história do Brasil. É uma conquista do movimento negro, porque ela não caiu do céu. Precisou-se de um governo mais sensível para poder atender a essa reivindicação. Mas a Lei tem problemas para seu pleno funcionamento, porque tem resistência. Resistência de algumas escolas, de educadoras/es, que acham que a Lei está criando falsos problemas, pois consideram que o Brasil é um país mestiço, não se trata da cultura do negro no Brasil, não se trata da cultura da África. Tem essa questão da resistência, que explica porque a Lei não está funcionando. O outro problema é que é necessária a formação continuada dos educadores. Os educadores, professores, foram formados nessa educação eurocêntrica. Foram formados por uma sociedade racista. Então, é preciso transformar a cabeça dos educadores, através de uma outra educação, para que a Lei possa funcionar. Além de formar educadores, é preciso também editar novos livros didáticos, de debates, reflexões, divorciados da historiografia oficial. Os livros são repletos de preconceitos. E esse processo está em andamento, tem livros muito bons. E há outros são livros que não dá para recomendar. E creio que se vencermos a resistência, se houver bastante material didático, pessoas formadas que decidissem mudar de cabeça dos educadores, podemos até superar o livro didático que tem um conteúdo negativo. Mas quando a própria educadora e o próprio educador introjetam tudo o que eles aprenderam, quando a invisibilidade do negro não incomoda, quando o racismo não incomoda, então isso não vai sair do lugar. São esses empecilhos, mas creio que o projeto de vocês faz parte dessa mudança, se eu posso considerar assim. Não existem só as instituições escolares tradicionais, já existem novas formas de escola trabalhando para que esse processo possa acontecer.
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